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A mais de trezentas milhas do Chimborazo, e a cem das neves do Cotopaxi, no território mais inóspito dos Andes equatoriais, encontra-se um misterioso vale entre as montanhas, separado do resto dos homens, a Terra dos Cegos.

Assim começa o conto que foi baseado numa postagem que recebi de um colega em um grupo de política onde fazia uso do conto para tentar exemplificar como seria discutir com um grupo de direita que apoia Bolsonaro, procure informações ssobre o conto, que nunca ouvi falar, com isso percebi que até parece de certa forma injusto tal comparação, segue logo abaixo o texto utilizado para tal comparação e a seguir o conto criado por H. G. Wells em 1904, o texto do conto está em Português de Portugal.

The Country of the Blind - H. G. Wells - xilogravura de Clifford Webb para a versão de 1939 The Country of the Blind - H. G. Wells - xilogravura de Clifford Webb para a versão de 1939

O Conto foi obtído no site Português Deficiência Visual

Existe um conto chamado “Terra de Cegos”, do autor H.G. Wells. Nele um homem com a visão normal chega a uma terra de cegos, e, diferente do ditado, ele não “reina” por lá, mas é tomado por todos como um homem que sofre alucinações. Após um tempo ele acaba se adaptando aquela sociedade e se resignando, até que as pessoas concluem que para ele ficar perfeitamente integrado é preciso livrá-lo daquelas alucinações, arrancando-lhes os olhos.

Pois bem, discutir com o núcleo duro do Bolsonarismo é como estar nessas terras. E fica bem claro que essas pessoas arrancariam nossos olhos sem pestanejar.

E.. não sei se arrancarão.

O Conto Original

A mais de trezentas milhas do Chimborazo, e a cem das neves do Cotopaxi, no território mais inóspito dos Andes equatoriais, encontra-se um misterioso vale entre as montanhas, separado do resto dos homens, a Terra dos Cegos. Há muitos anos esse vale estava tão aberto ao mundo, que era possível alcançar as suas uniformes pradarias, atravessando medonhos barrancos e um desfiladeiro gelado; e realmente chegaram lá seres humanos, uma ou duas famílias de mestiços peruanos, fugindo da cobiça e da tirania de um malvado governante espanhol. Aconteceu então a assombrosa erupção do Mindobamba, quando a noite durou dezassete dias em Quito, a água ferveu em Yaguachi e todos os peixes mortos chegaram a flutuar até mesmo a Guaiaquil; por toda a parte, ao longo da costa do Pacífico, houve deslizamentos de terra, rápidos degelos e inundações súbitas; e todo um lado da velha crista do Arauca desprendeu-se e despenhou-se com um ruído de trovões, e a erupção separou para sempre a Terra dos Cegos dos caminhos explorados pelos homens. Aconteceu, contudo, que um desses povoadores iniciais estivesse do outro lado dos desfiladeiros, quando o mundo tremeu tão terrivelmente, e por força viu-se obrigado a esquecer a mulher e o filho e todos os amigos e bens que tinha deixado lá em cima, e teve de começar uma vida nova no mundo mais abaixo. Começou de novo a sua vida, mas doente; foi afectado pela cegueira e veio a morrer nas minas, devido a maus-tratos; mas a história que ele contou fez nascer uma lenda que perdurou até hoje, em toda a cordilheira dos Andes.

Falou da razão que o havia levado a aventurar-se a abandonar aquele lugar protegido, para onde tinha sido inicialmente levado quando criança - amarrado ao lombo de um lama, junto com uma enorme carga de equipamentos. O vale, disse ele, tinha tudo o que o coração humano podia desejar - água doce, pastos, clima ameno, encostas de rico solo fértil com manchas de um arbusto que dava um fruto excelente, e de um lado grandes florestas de pinheiros que protegiam das avalanches. Longe, bem longe, de três lados, postavam-se imensos picos de rocha verde-acinzentada coroados de placas de gelo; mas a corrente do glaciar não se precipitava sobre os habitantes, antes fluía para longe através de encostas mais afastadas, e só de vez em quando grandes massas de gelo deslizavam para o vale. Neste vale nem chovia, nem nevava, mas mananciais abundantes proporcionavam ricas pastagens verdes, que a irrigação alargava a toda a extensão do vale. Os colonizadores haviam realmente feito um bom trabalho naquele lugar. Os animais criaram-se bem e multiplicaram-se, e havia uma só coisa que toldava a sua felicidade. E no entanto, era mais que suficiente para toldá-la de sobremaneira. Uma estranha doença havia-se abatido sobre eles, fazendo que não só todas as crianças ali nascidas, mas na verdade, várias das crianças mais velhas também, fossem atacadas pela cegueira. Foi para buscar algum encantamento ou antídoto contra essa praga da cegueira que ele tinha, com grande esforço, perigo e dificuldade, voltado atrás pelo desfiladeiro. Naquele tempo, em semelhantes casos, os homens não pensavam em germes e infecções, mas no pecado; e a ele parecia-lhe que a razão dessa aflição residia na negligência desses imigrantes sem sacerdotes, que não tinham erguido um templo assim que entraram no vale. Ele queria que um templo - bonito, barato, útil - fosse erguido no vale; queria relíquias e poderosos símbolos da fé, objectos abençoados, medalhas misteriosas e rezas. Na bolsa levava uma barra de prata cuja origem não se dispunha a revelar; com a teimosia própria do mentiroso inábil, insistia em que não havia prata nenhuma no vale. Tinham todos reunido e fundido as suas moedas e ornamentos, disse ele, para comprar a ajuda divina contra seu mal, já que, lá em cima, tinham pouca necessidade daquele tesouro. Consigo imaginar esse jovem montanhês de olhos turvos, queimado pelo sol, magro e ansioso, segurando febrilmente a aba do chapéu. Um homem totalmente desacostumado aos modos do mundo cá de baixo, contando a história antes da grande convulsão, a algum sacerdote arguto e atento; posso vê-lo depois tentar regressar com piedosos e infalíveis remédios contra aquele mal, e a infinita decepção que deve ter sofrido perante a imensa catástrofe que havia obstruído o desfiladeiro, por onde um dia tinha saído. Mas nada sei do resto da sua história de infortúnios, excepto que morreu vários anos depois, em trágicas circunstâncias. Pobre homem perdido daquela região remota! O curso de água que antes havia formado o desfiladeiro, sai agora estrepitosamente da boca de uma caverna rochosa, e a lenda desencadeada pela sua infeliz e mal contada história ainda hoje se pode ouvir, sobre uma raça de homens cegos, vivendo algures “para lá das montanhas”.

Ora, no meio da pequena população daquele vale agora isolado e esquecido, a doença seguiu o seu curso. Os velhos tornaram-se trôpegos e vacilantes, os jovens conseguiam ver, embora enevoadamente, e as crianças que deles nasceram, nunca chegaram a ver. Mas a vida era muito fácil naquela bacia rodeada de neve, sem espinheiros ou eglantinas, sem insectos nocivos nem animais selvagens, excepto a raça mansa de lamas que eles tinham carregado e transportado e que subiram os leitos dos rios estreitados pelos desfiladeiros pelos quais ali tinham chegado. A diminuição da visão tinha sido tão gradual que só se deram conta do que se passava, depois de perdida. No início guiavam as crianças cegas por aqui e por ali, até que todos passaram a conhecer maravilhosamente bem todo o vale; quando, por fim, a visão morreu entre eles, a raça sobreviveu. As mulheres cegas tiveram, até, tempo para se adaptarem e aprenderem a controlar o fogo, que acendiam cuidadosamente em fogões de pedra. Eram um tipo simples de gente no começo, analfabetos, só ligeiramente tocados pela civilização espanhola, mas com restos da tradição artística do antigo Peru e da sua filosofia perdida. A uma geração seguiu-se outra. Esqueceram muitas coisas, inventaram outras. A memória do mundo mais vasto de onde tinham vindo adquiriu um acento mítico e incerto. Em todas as coisas, salvo na visão, eles eram fortes e hábeis, e de vez em quando, o acaso fazia nascer entre eles alguém que tinha uma mente original e que era capaz de falar e de os persuadir, e logo depois surgia outro. Esses dois morreram, deixando o seu legado, e a pequena comunidade cresceu em número e em conhecimento, e enfrentou e resolveu problemas sociais e económicos que foram surgindo. As gerações seguiram-se umas às outras. Chegou uma altura em que nasceu uma criança que estava a quinze gerações daquele ancestral que saíra do vale com uma barra de prata para buscar a ajuda de Deus, e que nunca mais voltara. Acontece que, por volta dessa época, apareceu nessa comunidade, um homem proveniente do mundo exterior. E esta é a história desse homem.

Era um montanhês de perto de Quito, um homem que descera até ao mar e tinha visto o mundo, um leitor original de livros, um homem empreendedor e de inteligência arguta, que fora contratado - por uma equipa de ingleses que tinha vindo ao Equador para escalar montanhas - para substituir um dos seus três guias suíços que ficara doente. Escalaram aqui, escalaram ali, tendo surgido, então, a tentativa da escalada do Parascotopetl, o Mätterhorn dos Andes, em que esse homem se perdeu para o mundo exterior. A história do acidente foi escrita uma dezena de vezes. A narrativa de Pointer é a melhor. Ele conta, com um toque de autêntico dramatismo, como a pequena equipa lutou para subir o caminho difícil e quase vertical até ao sopé do último e maior dos precipícios, e como construíram um abrigo nocturno no meio da neve numa pequena reentrância de rocha, e se deram conta, pouco depois, de que Nunez já não estava entre eles. Gritaram, e não houve resposta; gritaram e assobiaram e, durante todo o resto daquela noite, não dormiram mais.

Quando amanheceu, viram as marcas da queda de Nunez. Parece impossível que esta tenha podido ocorrer sem que nenhum som tivesse sido emitido. Escorregara para leste, rumo à encosta desconhecida da montanha; muito abaixo tinha chocado com uma protuberância aguda de gelo e continuado a cair no meio de uma avalancha de neve. O sulco ia direito à beira de um precipício medonho, e, para lá, tudo estava oculto em mistério. Muito, muito lá em baixo, e enevoadas pela distância, podiam ver-se árvores subindo de um vale estreito, fechado ― a perdida Terra dos Cegos. Mas, lá de cima, não era possível saber que era a Terra dos Cegos, nem era possível distingui-la de qualquer outro trecho estreito de vale. Desalentados com o acidente, nessa mesma tarde puseram de lado todos os planos e Pointer acabou por ser convocado para a guerra antes de poder empreender uma nova escalada. Até hoje o Parascotopetl continua a exibir inconquistado o seu cume e o abrigo de Pointer desmorona-se entre as neves, sem que ninguém tenha voltado a visitá-lo.

Contudo, o homem que caiu sobreviveu.

No final do declive caiu mil pés e, envolto numa nuvem de neve precipitou-se sobre uma encosta gelada ainda mais escarpada do que a de cima. Descendo, girou, bateu com o corpo e atordoado, mas sem um único osso quebrado, foi parar a declives mais suaves. Finalmente parou de rolar e ficou imóvel, enterrado num monte macio de massas brancas que o tinham acompanhado e salvado. Voltou a si com a ténue impressão de que estava doente, de cama; depois, com a compreensão de um montanhês, percebeu a situação e, após um momento de descanso, livrou-se da neve, e caminhou até conseguir ver as estrelas. Descansou, durante algum tempo, deitado sobre o peito, imaginando onde estaria e o que lhe teria acontecido. Examinou os braços e as pernas e descobriu que vários botões tinham desaparecido do casaco, que lhe tinha subido para cima da cabeça. A faca tinha-lhe desaparecido do bolso e o chapéu tinha-se perdido, apesar de estar amarrado sob o queixo. Lembrou-se que, quando escorregara, estava à procura de pedras soltas para construir a sua parte da parede do abrigo. A sua machadinha de gelo também tinha desaparecido.

Chegou à conclusão de que devia ter caído, e olhou para cima para ver, exagerada pela luz fantasmagórica da lua nascente, a tremenda queda que tinha dado. Por um momento, permaneceu olhando de modo vazio para aquela enorme parede de rocha pálida que se erguia como uma torre, surgindo de súbito de uma maré rasante de escuridão. Aquela beleza irreal e misteriosa, manteve-o quieto durante algum tempo, mas logo um paroxismo convulso de riso soluçante irrompeu…

Bastante tempo depois, tomou consciência de que estava perto da borda inferior da neve. Mais abaixo, abaixo do que era agora uma encosta praticável, iluminada pela lua, deparou com a continuidade escura e áspera de um prado de erva salpicada de rochas. Lutou para se levantar, com todas as articulações e membros doloridos, livrou-se com dificuldade da neve solta amontoada à sua volta, rumou para baixo até chegar à turfa e ali, mais do que deitar-se, caiu ao lado de uma grande pedra; bebeu até ao fim do cantil que tirou do bolso de dentro e, instantaneamente, adormeceu…

Foi acordado pelo cantar dos pássaros nas árvores bem lá em baixo. Achava-se num pequeno monte ao pé de um enorme precipício, marcado pela descida que ele e a neve tinham sofrido. Acima, à sua frente, erguia-se contra o céu outra parede de rocha. O desfiladeiro entre os precipícios orientava-se de leste para oeste, pleno da luz do sol matinal, que iluminava a oeste a massa de montanha caída que tinha fechado o desfiladeiro descendente. A seus pés parecia abrir-se um precipício igualmente escarpado, mas, atrás da neve, achou uma espécie de fenda em forma de chaminé, gotejante com água da neve, pela qual um homem desesperado podia aventurar-se. Descobriu que era mais fácil do que parecia, e chegou por fim a outro monte desolado; então após uma escalada na rocha sem nenhuma dificuldade particular, chegou a uma escarpada encosta coberta de árvores. Orientou-se e voltou o rosto para o cimo do desfiladeiro, que se abria para prados verdes, entre os quais vislumbrou bastante distintamente um grupo de cabanas de pedra de construção insólita. Às vezes o seu progresso era tão lento como o escalar da face de uma parede. Algum tempo mais tarde o sol nascente deixou de brilhar sobre o desfiladeiro, ao longe as vozes dos pássaros morreram e o ar tornou-se frio e escuro à sua volta. Mas o vale distante, com as casas, estava cada vez mais brilhante. Chegou depois ao talude, e entre as rochas notou ― pois era um homem observador ― uma estranha samambaia que parecia sair das reentrâncias com ramos intensamente verdes. Pegou numa ou duas folhas, mastigou o talo e achou-o comestível.

Por volta do meio-dia saiu finalmente da garganta do desfiladeiro para o planalto e a luz do sol. Estava cansado e com os membros rígidos; sentou-se à sombra de uma rocha, encheu o cantil com água de uma fonte e bebeu; descansou algum tempo antes de se dirigir às casas.

Pareceram-lhe muito estranhas e, na verdade, todo o aspecto daquele vale se tornou, à medida que o olhava, mais estranho e menos familiar. A maior parte da área era ocupada por um luxuriante prado verde, cheio de inúmeras e bonitas flores, irrigado com extraordinário cuidado e exibindo indicadores de cultivo sistemático. Bem alto e cercando o vale havia um muro e o que parecia ser um canal circular, do qual provinham os veios de água que alimentavam as plantas do prado; nas encostas mais altas, acima do canal, rebanhos de lamas comiam o ralo pasto. Contra o muro fronteiriço aqui e ali erguiam-se cercados, abrigos ou manjedouras aparentemente para os lamas. Os canais de irrigação corriam até se juntarem num canal principal rumo ao centro do vale, abaixo, e esse canal era cercado de cada lado por um muro à altura do peito. Isto dava uma estranha qualidade urbana àquele lugar recluso, qualidade grandemente realçada pelo facto de que vários caminhos, pavimentados com pedras brancas e pretas, e cada um com uma curiosa pequena curva em cada esquina, iam para lá e para cá de modo ordenado. As casas da aldeia central eram bem diferentes da aglomeração casual e desordenada das aldeias de montanha que ele conhecia; as casas estavam dispostas numa fileira contínua de cada lado de uma rua central surpreendentemente limpa; aqui e ali as fachadas eram perfuradas por uma porta, mas nem uma única janela quebrava a uniformidade da sua frontaria. Eram coloridas com extraordinária irregularidade, manchadas com um tipo de cimento às vezes cinza, às vezes pardo, às vezes cor de ardósia ou castanho-escuro; e foi a visão desse estranho colorido que trouxe primeiro a palavra “cego” aos pensamentos do explorador. “O bom homem que fez isto” , pensou, “deve ser tão cego como um morcego.”

Desceu uma escarpa, e chegou ao muro e ao canal que corriam em torno do vale, perto de onde o último despejava o seu excesso nas profundezas do desfiladeiro, ali formando uma cascata fina e trémula. Agora ele podia ver, na parte mais remota do prado, homens e mulheres descansando sobre montes empilhados de erva, como se estivessem dormindo a sesta; mais perto da aldeia viam-se algumas crianças deitadas, e mais perto, três homens transportavam baldes em armações presas aos ombros, ao longo de um pequeno caminho, que levava do muro circundante às casas. Esses três homens vestiam trajes de lã de lama, tinham botas e cintos de couro e usavam chapéus de lã com aba traseira e protectores de ouvidos. Seguiam um atrás do outro, como se fosse uma fila, andando devagar e bocejando enquanto andavam, como se fossem homens que tivessem ficado acordados a noite inteira. Havia algo tão reconfortante de prosperidade e respeitabilidade no seu comportamento que, depois de hesitar um momento, Nunez se ergueu, tão visivelmente quanto possível, acima da rocha, e lançou um grande brado que ecoou em torno do vale.

Os três homens pararam e moveram as cabeças como se estivessem olhando em torno. Viraram o rosto para lá e para cá, e Nunez gesticulou. Mas eles não pareceram vê-lo, apesar de todos os seus gestos, e, passado algum tempo gritaram como que em resposta, virando-se para as montanhas longínquas à direita. Nunez berrou de novo, e enquanto gesticulava sem resultado, a palavra “cego” surgiu bem clara na sua cabeça. “Estes loucos devem ser cegos”, disse.

Quando, finalmente depois de muita gritaria e irritação, Nunez atravessou o curso de água por uma pequena ponte, passou por um portão no muro e se aproximou deles, teve a certeza de que eram cegos. Estava convencido de que esta era a Terra dos Cegos de que falavam as lendas. Havia-se apossado dele a convicção de que vivia uma grande e invejável aventura. Os três homens estavam parados um ao lado do outro, não olhando para ele, mas dirigindo os ouvidos para ele, avaliando-o pelas suas passadas pouco familiares. Mantinham-se bem perto um do outro, como se estivessem amedrontados, e ele podia ver-lhes as pálpebras fechadas e afundadas, como se os próprios globos oculares se tivessem contraído. Havia uma expressão como que de pavor em seus rostos.

“Um homem”, disse um deles, em espanhol mal reconhecível, “é um homem - um homem ou um espírito - que desceu das rochas.”

Mas Nunez avançou com os modos confiantes de um jovem no começo da vida. Recordou todas as antigas histórias do vale perdido e da Terra dos Cegos e na sua mente destacou-se esse velho provérbio, como se fosse um refrão:

“Em Terra de Cegos, Quem Tem um Olho é Rei.”

“Em Terra de Cegos, Quem Tem um Olho é Rei.”

E muito cortesmente cumprimentou-os. Falou-lhes utilizando os olhos.

“De onde vem ele, irmão Pedro?”, perguntou um deles.

“Desceu das rochas.”

“Venho do outro lado das montanhas”, disse Nunez, “de fora deste lugar - onde os homens podem ver. De perto de Bogotá, onde vivem cem mil pessoas e a cidade é tão grande que não se consegue abarcar com a vista.”

“Vista?”, murmurou Pedro. “Vista?”

“Ele vem de para lá das rochas”, disse o segundo cego.

O tecido dos seus casacos, reparou Nunez, era modelado curiosamente, cada um com um tipo diferente de costura. De repente, fizeram um movimento simultâneo na sua direcção, cada um com uma mão estendida e assustaram-no. Diante do avanço desses dedos abertos, ele recuou.

The Country of the Blind - H. G. Wells - xilogravura de Clifford Webb para a versão de 1939 The Country of the Blind - H. G. Wells xilogravura de Clifford Webb para a versão de 1939

“Venha cá” , disse o terceiro cego, seguindo o movimento de Nunez e agarrando-o.

Seguraram Nunez e apalparam-no, sem dizerem uma única palavra enquanto não terminaram.

“Cuidado”, disse Nunez, sentindo um dedo no olho, e descobriu que eles achavam esse órgão, com as suas pálpebras frementes, uma coisa esquisita. Voltaram a tocar-lhe.

“Uma criatura estranha, Correa”, disse o de nome Pedro. “Sinta a aspereza dos seus cabelos. Parecem o pêlo de um lama.”

“É áspero como as rochas que o pariram”, disse Correa, investigando, com mão suave e ligeiramente húmida, o queixo não barbeado de Nunez. “Talvez se torne menos áspero.”

Nunez lutou um pouco enquanto era examinado, mas eles seguraram-no com firmeza.

“Cuidado”, disse de novo.

“Ele fala”, disse o terceiro homem. “Não há dúvida que é um homem.”

“Ugh!”, disse Pedro, ao apalpar a aspereza do casaco de Nunez. “E você, veio para o mundo?”, perguntou Pedro.

“SAÍ do mundo. Por montanhas e glaciares; logo ali acima, a meio caminho do sol. Saí do grande, do enorme mundo que se estende, em doze dias de jornada, rumo ao mar.”

Eles pareciam prestar-lhe pouca atenção. “Os nossos pais disseram-nos que os homens podem ser criados pelas forças da natureza”, disse Correa. “Pelo calor das coisas e pela humidade, e a podridão… a podridão.”

“Vamos levá-lo aos anciãos”, disse Pedro.

“Grita antes”, disse Correa, “para que as crianças não se assustem. Esta é uma ocasião importante.”

Gritaram, e Pedro foi à frente, levando Nunez pela mão, para o conduzir às casas.

Nunez afastou a mão. “Posso ver”, disse.

“Ver?”, disse Correa.

“Ver”, disse Nunez, voltando-se para ele, e tropeçou no balde de Pedro.

“Os sentidos dele ainda são imperfeitos”, disse o terceiro cego. “Tropeça e diz palavras sem sentido. Levem-no pela mão.”

“Como vocês quiserem”, disse Nunez, e foi conduzido pela mão, rindo. Parecia que eles não sabiam nada sobre a visão. Bem, com o tempo ele os ensinaria.

Ouviu pessoas a gritar, e viu algumas figuras que se reuniam na rua principal da aldeia.

Reparou que aquele primeiro encontro com a população da Terra dos Cegos o estava a enervar e impacientou-se mais do que tinha esperado. O lugar parecia maior, à medida que se aproximava, e as cores manchadas mais estranhas; uma multidão de crianças, homens e mulheres (notou com agrado que algumas das mulheres e raparigas tinham rostos bastante bonitos, apesar de todas elas terem os olhos fechados e afundados) chegou junto dele, segurando-o, tocando-o com mãos suaves e sensíveis, cheirando-o e ouvindo cada palavra que ele dizia. Algumas das raparigas e das crianças, contudo, mantinham-se afastadas, como se tivessem medo, e realmente a sua voz parecia áspera e rude em comparação com os tons deles, mais suaves. Cercaram-no. Os seus três guias mantiveram-se perto, com um ar de propriedade, e diziam e repetiam: “Um homem selvagem que veio das rochas”.

“De Bogotá”, disse Nunez. “De Bogotá. Para lá das cristas das montanhas.”

“Um homem selvagem - falando palavras selvagens” , disse Pedro. ‘‘Vocês ouviram isto - BOGOTÁ? A sua mente ainda não está formada. Ele tem apenas os rudimentos da fala.”

Um garotinho acariciou a mão de Nunez. “Bogotá”, disse, troçando. “Ai! Uma cidade, diferente da vossa aldeia. Venho do grande mundo - onde os homens têm olhos e vêem.”

“O nome dele é Bogotá”, disseram.

“Tropeçou”, disse Correa, “tropeçou duas vezes enquanto chegávamos aqui.”

“Levem-no aos anciãos.”

E de repente empurraram-no por uma porta dentro, para uma sala escura como breu, a não ser ao fundo, onde uma pequena fogueira brilhava fracamente. A multidão fechou o caminho atrás dele e bloqueou quase completamente a luz do dia e, antes que ele pudesse impedir-se, tinha caído de cabeça ao tropeçar nos pés de um homem sentado. O seu braço, estendido, bateu no rosto de alguém enquanto caía; sentiu o toque macio de uma face e ouviu um grito de raiva, e por um momento lutou contra várias mãos que o agarraram. Era uma luta desigual. Deu-se conta da situação e ficou quieto.

“Caí”, disse. “Não consegui ver nesta escuridão profunda.”

Houve uma pausa, como se as pessoas não vistas em torno dele tentassem entender as suas palavras. Então a voz de Correa disse: “Ele acaba de ser criado. Tropeça quando anda e mistura palavras que não querem dizer nada, quando fala”.

Outros também disseram coisas que ele mal ouviu ou entendeu imperfeitamente.

“Posso-me levantar?”, perguntou, numa pausa do burburinho. “Não vou lutar com vocês de novo.”

Eles consultaram-se entre si e deixaram-no levantar-se.

A voz de um homem mais velho começou a interrogá-lo, e Nunez deu por si tentando explicar o grande mundo do qual tinha caído, e o céu, as montanhas, a visão e outras tantas maravilhas, àqueles anciãos sentados no escuro, na Terra dos Cegos. Mas eles não acreditavam em nada e não entendiam nada do que ele lhes dizia, facto bem distante das expectativas de Nunez.

Há catorze gerações que estas pessoas eram cegas e estavam separadas do mundo da visão; os nomes de todas as coisas referentes à visão tinham desaparecido e mudado; a lembrança do mundo lá fora tinha desaparecido e tinha-se convertido num conto de fadas; e eles tinham deixado de se preocupar com qualquer coisa que existisse para lá das encostas rochosas do seu muro circundante. Cegos de génio tinham surgido entre eles e questionado os restos de crença e tradição que o povo trazia consigo desde os dias da visão, e haviam posto de lado todas essas memórias, como fantasias ociosas e haviam-nas substituído por novas explicações mais credíveis. A sua imaginação tinha murchado juntamente com os olhos; e criaram para si mesmos novas imaginações com os seus ouvidos e pontas de dedos cada vez mais sensíveis.

Lentamente Nunez foi-se dando conta disso; que a sua expectativa de ser admirado e reverenciado graças à sua origem e dons não iria realizar-se; e após a sua precária tentativa de lhes explicar a visão ter sido posta de lado, como não passando da versão confusa de um ser recém-criado, descrevendo as maravilhas de sensações incoerentes, ele conformou-se, um tanto espantado, com os conhecimentos que lhe queriam transmitir.

E o mais velho dos cegos explicou-lhe a vida, a filosofia e a religião. Como o mundo (querendo dizer o seu vale) tinha sido inicialmente um vazio oco nas rochas, e então surgiram, primeiro, coisas inanimadas sem o dom do tacto, depois os lamas e umas poucas outras criaturas com pouco sentido das coisas, então os seres humanos, e por fim os anjos, que se podiam ouvir cantando e agitando-se, mas nos quais ninguém podia tocar, história que muito espantou Nunez, até que ele pensou que se estaria a referir aos pássaros.

O ancião continuou contando a Nunez como o tempo tinha sido dividido entre o quente e o frio, que são os equivalentes dos cegos ao dia e à noite, e como era bom dormir no quente e trabalhar no frio, de modo que agora, não fosse a sua chegada, toda a cidade dos cegos estaria dormindo. Disse que Nunez devia ter sido criado especialmente para aprender e pôr-se ao serviço da sabedoria que eles tinham adquirido e que, apesar de toda a sua incoerência mental e todos os seus tropeções, ele precisava de ter coragem, e esforçar-se por aprender, e perante isto toda a multidão, à entrada da porta, assentiu de modo encorajador. Ele disse que a noite - pois os cegos chamam noite ao seu dia - ia agora muito avançada, de modo que todos deviam ir para casa dormir. Perguntou a Nunez se este sabia dormir e Nunez disse que sabia, mas que antes de dormir, queria comer. Trouxeram-lhe comida - leite de lama numa taça, e pão duro salgado - e levaram-no a um lugar isolado de modo que não o ouvissem comer. Depois ele deveria dormir até que o frio da noite na montanha os acordasse para começarem o novo dia.

Mas Nunez não conseguiu dormir de maneira nenhuma. Em vez disso, sentou-se no lugar em que o deixaram, descansando os membros e fazendo girar e girar na mente as circunstâncias inesperadas de sua chegada.

De vez em quando ria-se, às vezes divertido, às vezes indignado.

“Mente não formada!”, disse. “Ainda não formou os sentidos! Mal sabem que estão insultando o seu rei e mestre enviado do céu. Tenho que trazê-los à razão. Deixem-me pensar - deixem-me pensar.”

Ainda estava a reflectir quando o sol se pôs.

Nunez sabia captar a beleza das coisas e pareceu-lhe que o fulgor brilhante sobre os campos nevados e dos glaciares à volta do vale eram a coisa mais bela que ele alguma vez tinha visto. Os seus olhos passearam-se com deleite pela aldeia até aos campos irrigados, que se afundavam rapidamente no lusco-fusco, e de repente uma onda de emoção tomou-o, e ele deu graças a Deus, do fundo do coração, por lhe ter sido dado o dom da visão.

Ouviu uma voz chamando por ele, da aldeia: “Ei, Bogotá! Chegue aqui!”.

Ao ouvir isto, levantou-se a sorrir. Ia mostrar a essa gente, de uma vez por todas, o que a visão pode fazer por um ser humano. Iriam procurá-lo, mas não o achariam.

“Não se mexa, Bogotá”, disse a voz.

Ele riu silenciosamente e deu dois passos sorrateiros para fora do caminho.

“Não pise a erva, Bogotá; é proibido.”

Nunez mal tinha ouvido o ruído que ele próprio fizera. Parou, espantado.

O dono da voz correu pelo caminho acima, em direcção a Nunez.

Este voltou para o caminho. “Aqui estou”, disse.

“Porque não veio quando o chamei?”, disse o cego. “Você precisa de ser conduzido como uma criança? Não consegue ouvir o caminho enquanto anda?”

Nunez riu. “Posso vê-lo”, disse.

“Não existe a palavra VER”, disse o cego, após uma pausa. “Pare com essa loucura e siga o som dos meus pés.”

Nunez seguiu-o, um tanto aborrecido. “A minha vez vai chegar”, disse.

‘Você vai aprender”, respondeu o cego. “Há muita coisa para aprender no mundo.”

“Nunca lhe disseram «Em Terra de Cegos, Quem Tem um Olho é Rei»?

“O que é cego?”, perguntou o cego, despreocupadamente, por cima do ombro.

Passaram-se quatro dias e o quinto dia encontrou o Rei dos Cegos ainda incógnito, estranho, desajeitado e inútil entre os seus súbditos.

Nunez descobriu que era muito mais difícil proclamar-se rei do que supusera, e, entretanto, enquanto meditava no seu coup d’état, fez o que lhe diziam e aprendeu as maneiras e costumes da Terra dos Cegos. Achou que trabalhar e andar durante a noite era uma coisa particularmente cansativa, e decidiu que essa era a primeira coisa que iria mudar.

Aquela gente levava uma vida simples, laboriosa, com todos os elementos de virtude e felicidade que podem ser entendidas pelos seres humanos. Trabalhavam, mas não de modo opressivo; tinham comida e roupa suficientes para as suas necessidades; tinham dias e estações de descanso; tocavam música e dançavam muito, havia amor entre eles, e crianças pequenas.

Era maravilhoso ver a confiança e a precisão com que eles se movimentavam no seu mundo bem ordenado. Tudo tinha sido feito para se adequar às suas necessidades; cada um dos caminhos que irradiavam da área do vale tinha um ângulo constante em relação aos outros, e cada um deles se distinguia por uma cunha especial sobre a sua curva; todos os obstáculos e irregularidades tinham sido suprimidos, havia muito, do caminho ou da prado; os seus métodos e procedimentos adequavam-se naturalmente às suas necessidades específicas. Os seus sentidos tinham-se tornado maravilhosamente apurados; podiam ouvir e identificar o menor movimento de um ser humano a uma dezena de passos - podiam ouvir até o bater do seu coração. A entoação tinha substituído, havia muito, as expressões do rosto, e os toques pelo tacto tinham substituído os gestos indicativos; o seu trabalho com enxada, pá e ancinho era tão fácil e seguro quanto a jardinagem pode ser. O sentido do olfacto era extraordinariamente apurado; podiam distinguir diferenças individuais tão rapidamente quanto um cão, e manejavam, com facilidade e confiança, os lamas, que viviam entre as rochas lá em cima e vinham ao muro procurar comida e abrigo. Foi somente quando, por fim, Nunez procurou afirmar-se, que descobriu quão fáceis e confiantes eram os movimentos deles.

Somente se rebelou quando falhou a tentativa de os persuadir. No início, tentou em várias ocasiões explicar-lhes a visão. “Escutem-me”, disse. “Há coisas em mim que vocês não entendem.”

Uma vez ou outra, um ou dois deles prestaram-lhe atenção; sentaram-se com os rostos baixos e os ouvidos voltados inteligentemente na direcção de Nunez, e ele fez o melhor que pôde para lhes explicar o que era ver. Entre os seus ouvintes havia uma jovem, com pálpebras menos vermelhas e afundadas do que as outros, de modo que quase se podia imaginar que ela estava escondendo os olhos, e a esta ele esperava especialmente convencer. Falou das belezas da visão, das montanhas, do céu e do nascer do sol, e eles ouviam-no com uma incredulidade divertida que, depois, se tornou condenatória. Disseram-lhe que não havia montanhas de modo nenhum, mas que o fim das rochas onde os lamas pastavam era na verdade o fim do mundo; dali partia o tecto do universo, de onde vinham o orvalho e as avalanches; e quando ele se manteve firme na afirmação de que o mundo não tinha fim nem tecto, ao contrário do que eles supunham, responderam-lhe que os seus pensamentos eram pecaminosos. Até ao ponto em que ele podia descrever o céu, as nuvens e as estrelas, tudo lhes parecia um vácuo monstruoso, um terrível vazio no lugar do tecto liso sobre as coisas no qual acreditavam - era um artigo de fé entre eles que o tecto da caverna era plenamente liso ao toque. Nunez percebeu que de algum modo ele os chocava e desistiu de vez desse assunto. Tentou, então, mostrar-lhes o valor prático da visão. Uma manhã viu Pedro no caminho chamado Dezassete, dirigindo-se às casas centrais, mas ainda longe demais para a audição ou o olfacto, e disse-lhes. “Daqui a pouco”, previu, “Pedro estará aqui.” Um velho notou que Pedro não tinha nada para fazer no caminho Dezassete e então, como que para confirmar isso, Pedro, quando chegou mais perto, virou e caminhou transversalmente para o caminho Dez, e depois seguiu com passos ágeis rumo ao muro externo. Eles ridicularizaram Nunez quando Pedro não chegou, e depois, quando Nunez fez perguntas a Pedro para esclarecer o assunto, Pedro negou e enfrentou-o, e daí em diante tornou-se hostil a Nunez.

Convenceu-os a deixá-lo subir bem longe pelas encostas da pradaria, rumo ao muro, com um companheiro que concordasse, e prometeu descrever-lhe tudo o que estivesse a acontecer entre as casas. Chamou a atenção para certas idas e vindas, mas as coisas que realmente pareciam ter significado para aquela gente aconteciam dentro ou atrás das casas sem janelas. Estas eram as únicas coisas de que tomavam nota para testá-lo e essas coisas ele não podia ver. Foi após o fracasso desta tentativa, e da troça que eles não conseguiram reprimir, que ele recorreu à força. Pensou em segurar uma pá e de repente derrubar um ou dois e assim, em combate leal, mostrar a vantagem dos olhos. Chegou até, com essa intenção, a segurar uma pá, mas então descobriu algo de novo a seu respeito: era-lhe impossível agredir um cego a sangue-frio.

Hesitou e descobriu que todos haviam percebido que ele agarrara a pá. Todos ficaram em alerta, com as cabeças de lado, e ouvidos inclinados na sua direcção, para detectar o que ele iria fazer em seguida.

“Pouse essa pá”, disse um deles, e Nunez sentiu uma espécie de horror indizível. Quase que obedeceu.

Então empurrou um dos cegos contra a parede de uma casa, e fugiu da aldeia.

Atravessou um dos prados, deixando um rasto de erva esmagada pelos pés, e sentou-se ao lado de um dos caminhos. Sentiu algo da expectativa que acomete todos os homens no começo de uma luta, mas uma perplexidade maior. Começou a perceber que não se pode lutar com ânimo contra criaturas que estão numa situação mental diferente da nossa. Ao longe, viu um grupo de homens empunhando pás e paus, saindo da rua das casas, e avançando em filas que se espalhavam pelos vários caminhos na direcção dele. Avançavam devagar, falando frequentemente uns com os outros, e sempre que toda a fileira parava, cheiravam o ar e escutavam.

Da primeira vez em que fizeram isso, Nunez riu. Mas depois deixou de rir. Um deles percebeu o trilho deixado por Nunez na erva, e inclinando-se veio tacteando o caminho.

Durante cinco minutos Nunez observou o lento abrir, em cordão, da fileira dos cegos, e então a sua vaga intenção de fazer alguma coisa tornou-se frenética. Levantou-se, deu um ou dois passos em direcção ao muro circundante, virou-se e voltou um pouco atrás. Ali estavam todos eles parados, formando uma meia-lua, silenciosos e procurando escutar.

Ele também ficou parado, agarrando firmemente a pá com as duas mãos. Devia atacá-los?

A pulsação nos seus ouvidos corria ao ritmo de “Em Terra de Cegos, Quem Tem um Olho é Rei.”

Devia atacá-los?

Olhou para trás para o muro alto e inescalável - inescalável por causa do seu cimento liso, mas também perfurado com muitas portinholas, e olhou para a linha dos seus perseguidores que se aproximava. Atrás destes, outros vinham agora da rua das casas.

Devia atacá-los?

“Bogotá!”, um deles chamou. “Bogotá, onde está você?”

Agarrou a pá ainda com mais força e avançou pelos prados direito ao sítio das casas, e imediatamente, enquanto andava, eles convergiram à sua volta. “Vou atacá-los se me tocarem”, jurou. “Por Deus, vou fazer isso. Vou atacá-los.” Berrou: “Olhem aqui, vou fazer o que quiser neste vale. Vocês estão a ouvir? Vou fazer o que quero e ir aonde quero”.

Eles estavam rapidamente a convergir rumo a ele, tacteando, mas movendo-se rapidamente. Era como brincar à cabra-cega, com todo a gente vendada, menos um. “Agarrem-no!”, gritou um deles. Nunez viu-se no arco de uma curva solta de perseguidores. Sentiu subitamente que precisava de entrar em acção.

“Vocês não entendem”, gritou numa voz que pretendia ser imperiosa e resoluta, mas que lhe saiu fraca. “Vocês são cegos, e eu posso ver. Deixem-me em paz!”

“Bogotá! Largue essa pá, e saia da erva!”

Esta última ordem, grotesca na sua familiaridade civilizada, produziu-lhe um acesso de raiva. “‘Vou feri-los”, disse Nunez, soluçando de emoção. “Por Deus, vou feri-los. Deixem-me em paz!”

Começou a correr, sem saber claramente para onde correr. Correu para longe do cego mais próximo, pois era um horror golpeá-lo. Parou, fez uma tentativa para escapar das fileiras que o cercavam. Dirigiu-se para onde havia um grande vazio, mas os homens de cada lado, com uma rápida percepção da aproximação de seus passos, juntaram-se uns aos outros, preenchendo o vazio. Nunez pulou para a frente, viu que ia ser capturado e ZÁS! golpeou alguém com a pá. Sentiu o choque macio de mão e braço, e o homem caiu com um grito de dor. Nunez tinha conseguido passar!

Tinha conseguido passar! Já estava de novo perto da rua das casas, e os cegos, girando pás e estacas, corriam com uma espécie de rapidez calculada para lá e para cá.

Nunez ouviu passos atrás de si, ainda a tempo, e descobriu um homem alto correndo para a frente e procurando, pelos sons, atingi-lo. Nunez assustou-se, atirou a pá que caiu a uma jarda do seu antagonista, virou-se e fugiu, berrando alto enquanto fintava outro.

Estava tomado pelo pânico. Correu furiosamente para lá e para cá, fintando com a pá quando não havia nenhuma necessidade de fintar, e, na sua ansiedade de ver para todos os lados de uma vez só, acabou tropeçando. Por um momento ficou caído e eles ouviram-no cair. Longe, no muro circular, uma portinhola parecia a entrada para o Paraíso, e ele correu desenfreadamente rumo a ela. Nem olhou para os seus perseguidores até chegar à portinhola; tropeçou a meio da ponte e gatinhou pelas rochas, para surpresa e desgosto de um jovem lama que rapidamente perdeu de vista; deitou-se no chão, resfolegando, sem ar.

E assim acabou o seu coup d’état.

Ficou fora do muro do Vale dos Cegos duas noites e dois dias, sem comida nem abrigo, e meditou sobre os acontecimentos inesperados. Durante essas meditações repetia muito frequentemente, e com um tom cada vez mais profundo de escárnio, o provérbio: “Em Terra de Cegos, Quem Tem um Olho é Rei.” Pensou sobretudo em maneiras de lutar e conquistar este povo, e tornou-se-lhe claro que não havia nenhuma maneira possível. Não tinha armas, e agora seria difícil obtê-las.

A doença da civilização tinha-o atingido, mesmo em Bogotá, e ele não conseguia descer ao ponto de achar em si os meios de assassinar um homem cego. É claro que, se fizesse isso, poderia ditar os termos, sob a ameaça de assassiná-los a todos. Mas, mais cedo ou mais tarde, precisaria de dormir!…

Também tentou achar comida entre os pinheiros, sentir conforto sob os seus ramos para se proteger da geada da noite, e - com menos confiança - capturar um lama por meio de qualquer artimanha e tentar matá-lo - talvez batendo-lhe com uma pedra - e então, talvez, comer um pouco dele. Mas o lama encarou-o com desconfiados olhos castanhos, e cuspiu quando ele chegou perto. No segundo dia teve medo e acessos de tremores. Finalmente rastejou de volta para o muro da Terra dos Cegos e tentou entrar num acordo. Rastejou ao longo do curso de água, gritando, até que dois cegos vieram ao portão e falaram com ele.

“Enlouqueci”, disse. “Mas eu tinha acabado de ser criado.”

Eles disseram que assim estava melhor.

Contou-lhes que estava mais sábio agora, e se arrependia de tudo o que tinha feito. Então chorou sem querer, pois estava agora muito fraco e doente, e eles tomaram isso como um bom sinal.

Perguntaram-lhe se ele ainda pensava que era capaz de “ver”.

“Não” , disse. “Era loucura. A palavra não quer dizer nada - menos do que nada!”

Perguntaram-lhe o que havia lá em cima.

“A cerca de dez vezes dez a altura de um homem, há um tecto acima do mundo - de rocha - e liso, muito liso… Tão liso - tão maravilhosamente liso…” Irrompeu de novo em lágrimas histéricas. “Antes que me perguntem mais coisas, dêem-me comida ou morrerei.”

Ficou à espera de duros castigos, mas aquele povo cego era capaz de tolerância. Encararam a sua rebelião como mais uma prova da idiotia e inferioridade gerais dele, e, depois de o chicotearam, mandaram-no fazer o trabalho mais simples e mais pesado que tinham para alguém fazer, e ele, não vendo outro modo de vida, fez submisso o que lhe disseram para fazer.

Ficou doente durante uns dias, e cuidaram bondosamente dele. Isso fez intensificar-se a sua submissão. Mas eles insistiram em que ele permanecesse no escuro, e essa era uma grande desdita. Filósofos cegos vinham e falavam-lhe da pecaminosa leviandade da sua mente, e repreenderam-no de tal modo por causa das suas dúvidas sobre a tampa de rocha que cobria a sua panela cósmica que ele quase duvidou se na verdade não era vítima de alucinações ao não ver a tampa lá em cima.

Assim, Nunez tornou-se um cidadão da Terra dos Cegos, e esse povo deixou de ser um povo indiferenciado e as pessoas adquiriram individualidade e tornaram-se-lhe familiares, à medida que o mundo além das montanhas se tornou cada vez mais remoto e irreal.

Havia Yacob, o seu amo, homem bondoso quando não estava zangado; havia Pedro, sobrinho de Yacob, e havia Medina-saroté, a filha mais nova de Yacob. Ela era pouco apreciada no mundo dos cegos, porque tinha um rosto anguloso sem aquela maciez satisfatória, vítrea, que é, para o cego, o ideal da beleza feminina; mas Nunez achara-a linda desde o início, e depois a coisa mais linda neste mundo. As pálpebras fechadas dela não eram avermelhadas e afundadas como era comum no vale, mas parecia que iam abrir-se de novo a qualquer momento, e tinha longos cílios, o que levava os outros a julgarem o seu rosto gravemente desfigurado. E a sua voz era forte, e portanto não satisfazia a audição apurada dos jovens do vale. Por isso, não tinha amante.

Chegou a hora em que Nunez pensou que, se pudesse conquistá-la, se resignaria a viver no vale para o resto dos seus dias.

Observava-a, buscava oportunidades de lhe prestar pequenos serviços, e depois percebeu que ela também o observava. Uma vez, numa reunião num feriado, sentaram-se lado a lado à ténue luz das estrelas, e a música era doce a seus ouvidos. A mão dele pousou sobre a dela e ousou apertá-la. E então, ternamente, ela devolveu-lhe a pressão. E um dia, quando tomavam a sua refeição no escuro, ele sentiu a mão dela procurando suavemente por ele e, como por acaso, o fogo crepitou e ele viu ternura do rosto dela.

Tentou falar-lhe.

Foi procurá-la um dia quando ela estava sentada ao luar, fiando.

The Country of the Blind - H. G. Wells - xilogravura de Clifford Webb para a versão de 1939 The Country of the Blind - H. G. Wells - xilogravura de Clifford Webb para a versão de 1939

A lua convertia-a num objecto de prata e de mistério. Ele sentou-se aos pés dela e disse-lhe que a amava, e disse-lhe quão linda a achava. Tinha a voz de um amante, falava com uma terna reverência que se aproximava da adoração, e ela nunca tinha sido antes tocada com adoração. Ela não lhe deu nenhuma resposta definida, mas ficou claro que as suas palavras lhe agradavam.

Depois disto, falava com ela sempre que tinha oportunidade. O vale tornou-se o mundo para ele, e o mundo para além das montanhas, em que os homens viviam à luz do sol, parecia-lhe não mais do que um conto de fadas que ele iria um dia sussurrar aos ouvidos dela. Com muito cuidado, experimentando de várias formas, ele timidamente falou-lhe da visão.

A visão era para ela a mais poética das fantasias, e ouvia, com indulgente cumplicidade, a descrição que ele fazia das estrelas e das montanhas e da própria beleza dela, que dizia branca e iluminada. Ela não acreditava, podia entender apenas parte do que ele dizia, mas estava misteriosamente encantada e pareceu-lhe que entendia tudo.

O amor dele perdeu o temor e cresceu em coragem. Decidiu pedi-la em casamento a Yacob e aos anciãos, mas ela ficou com medo e foi retardando as coisas. E foi uma das suas irmãs mais velhas a primeira a contar a Yacob que Medina-saroté e Nunez estavam apaixonados um pelo outro.

Houve desde o início uma oposição muito forte ao casamento de Nunez e Medina-saroté; não tanto por a valorizarem, mas porque tinham Nunez como um ser à parte, um idiota, um ser incompetente, uma coisa abaixo do nível permissível para um ser humano. As irmãs dela opuseram-se brutalmente ao casamento, como se este fosse trazer descrédito a todas eles; e o velho Yacob, embora tivesse criado uma espécie de afeição por esse servo desajeitado e obediente, sacudiu a cabeça e disse que não podia ser. Os homens jovens ficaram todos irritados com a ideia de corromper a raça, e um foi tão longe na sua indignação a ponto de insultar e agredir Nunez. Este reagiu à agressão. Então, pela primeira vez, descobriu uma vantagem em ser capaz de ver, mesmo ao lusco-fusco, e quando a luta terminou, ninguém mais se dispôs a levantar a mão contra ele. Mas ainda achavam impossível o casamento.

O velho Yacob tinha uma certa ternura pela sua filha mais nova, e comoveu-se ao vê-la chorando no seu ombro.

“Sabes, querida, ele é um idiota. Sofre de alucinações; não sabe fazer nada em termos.”

“Sei disso”, chorou Medina-saroté. “Mas ele está melhor do que já foi. Está a tornar-se melhor. E ele é forte, querido pai, e bom - mais forte e mais bondoso do que qualquer outro homem no mundo. E ama-me, e, pai, eu amo-o.”

O velho Yacob ficou muito preocupado ao descobrir que ela estava inconsolável e, além disso, o que o deixava ainda mais preocupado, ele gostava de Nunez por muitas razões. Então compareceu perante a câmara do conselho juntamente com os outros anciãos, observou o rumo da conversa, e, no momento adequado disse: “Ele está melhor do que já foi. Muito provavelmente um dia vamos julgá-lo tão bom quanto nós próprios”.

Então, um dos anciãos, depois de pensar profundamente, teve uma ideia. Ele era o grande médico entre aquelas pessoas, o seu curandeiro, tinha uma mente muito filosófica e inventiva, e a ideia de curar Nunez das suas peculiaridades atraía-o. Um dia, quando Yacob estava presente, ele voltou ao tópico de Nunez. “Examinei Bogotá”, disse, “e o caso está mais claro para mim. Penso que muito provavelmente ele pode ser curado.”

“Isso é o que sempre esperei”, disse o velho Yacob.

“O cérebro dele é que está afectado”, disse o médico cego.

Os anciãos fizeram um murmúrio de assentimento.

“E o que é que o afecta?”

“Ah”, disse o velho Yacob.

“Isto”, disse o médico, respondendo à sua própria pergunta. “Essas estranhas coisas que chamamos os olhos, e que existem para produzir uma depressão agradável no rosto, estão doentes, no caso de Nunez, de uma maneira tal, que afecta o seu cérebro. São excessivamente salientes, ele tem cílios e as pálpebras mexem-se, e consequentemente o cérebro está num estado de constante irritação e distracção.”

“Sim?”, disse o velho Yacob. “Sim?”

“E eu acho que posso dizer, com razoável certeza, que, para curá-lo completamente, tudo o que precisamos de fazer é uma cirurgia bastante simples e fácil - ou seja, extrair esses corpos irritantes.”

“E ele ficará são?”

“Então ele ficará perfeitamente são e será um cidadão respeitável.”

“Graças aos céus pela ciência!”, disse o velho Yacob, e correu para contar a Nunez as boas novas.

Mas o modo como Nunez recebeu a notícia surpreendeu Yacob como sendo frio e decepcionante.

“Poderia pensar-se”, disse Yacob, “pelo tom com que você fala, que não se incomoda com a minha filha.”

Foi Medina-saroté quem convenceu Nunez a aceitar a intervenção dos cirurgiões cegos.

“Tu não queres que eu”, disse ele, “perca o meu dom da visão, pois não?”

Ela sacudiu a cabeça.

“O meu mundo é a visão.”

Ela baixou a cabeça.

“Existem coisas belas, pequenas coisas belas - as flores, os líquenes entre as rochas, a leveza e a macieza de um bocado de pele, o céu longínquo com as nuvens a passar, os pôr-do-sol e as estrelas. E existes TU. Apenas para te ver já é bom ter a visão, para ver o teu rosto doce, sereno, os teus lábios bondosos, as tuas queridas e belas mãos entrecruzadas… São esses olhos meus que tu conquistaste, esses olhos que me mantêm ligado a ti, são esses olhos que esses idiotas querem tirar-me. Em vez disso, vou precisar de te tocar, ouvir-te, e não poderei ver-te nunca mais. Terei de ficar sob este tecto de rocha, pedra e escuridão, este horrível teto sob o qual a tua imaginação definha … Não, tu não me obrigarias a fazer isso?”

Uma dúvida desagradável tinha surgido dentro dele. Parou e deixou no ar a pergunta.

“Eu gostava”, disse ela, “às vezes -“ Ela parou de falar.

“Sim”, disse ele, um pouco apreensivo.

“Eu às vezes gostava - que tu não falasses assim.”

“Assim, como?”

“Sei que é bonito - é a tua imaginação. Eu amo a tua imaginação, mas agora -“

Ele esfriou. “Agora?”, disse, com voz débil.

Ela sentou-se e ficou calada.

“Tu queres dizer - tu achas - que eu ficaria melhor, melhor talvez -“

Rapidamente, ele entendeu. Sentiu raiva, raiva de verdade, diante do duro curso do destino, mas também simpatia pela falta de compreensão dela - uma simpatia próxima da piedade.

“Querida”, disse, e podia agora ver, pela sua palidez, quão intensamente o espírito dela lutava contra as coisas que não podia dizer. Rodeou-a com os braços, beijou-lhe a orelha, e permaneceram um bocado sentados em silêncio.

“E se eu consentisse nisso?”, disse ele por fim, numa voz muito suave.

Ela apertou-o nos braços, chorando muito. “Oh, se consentisses”, soluçou, “se realmente consentisses!”

Durante a semana que precedeu a operação que deveria resgatá-lo da servidão e da inferioridade e trazê-lo para o nível de um cidadão cego, Nunez não dormiu nada, e durante as horas quentes de sol, enquanto os demais dormiam felizes, ele ficava sentado meditando ou vagueava sem rumo, tentando convencer-se a defrontar o dilema. Tinha dado a resposta, tinha dado o seu consentimento, e ainda assim não tinha a certeza. Finalmente, o dia do limite do prazo chegou ao fim, o sol surgiu esplendorosamente por sobre as cristas douradas, e o último dia de visão começou para ele. Teve uns minutos com Medina-saroté antes de se separarem para ela dormir.

“Amanhã”, disse ele, “já não verei.”

“Querido do meu coração!”, respondeu ela, e apertou-lhe as mãos com toda a força.

“Magoar-te-ão pouco”, disse ela; “e tu vais passar por essa dor - vais passar por isso, querido amor, por mim … Querido, se o coração e a vida de uma mulher forem suficientes, vou recompensar-te. Queridíssimo, queridíssimo, tu, com a tua voz terna, vou recompensar-te.”

Ele ficou inundado de piedade por si mesmo e por ela.

Segurou-a nos braços, e apertou os lábios contra os dela, e olhou o doce rosto pela última vez. “Adeus!”, sussurrou diante dessa querida visão, “adeus!” E então, silenciosamente, deixou-a.

Ela ouviu os passos lentos dele à saída, e algo no seu ritmo fê-la debulhar-se em lágrimas.

Ele tinha decidido ir para um lugar solitário, onde os prados estavam belos, cheios de narcisos brancos, e ali ficar até que chegasse a hora de seu sacrifício, mas enquanto andava, ergueu os olhos e viu a manhã, a manhã, que como um anjo de armadura dourada, descia pelos picos…

Perante este esplendor, pareceu-lhe que aquele mundo cego no vale e o seu amor, não eram mais, afinal do que um poço de pecado.

Não voltou para trás, como tinha tencionado; seguiu em frente, ultrapassou o muro circundante e começou a subir pelas rochas, enquanto o olhar permanecia fixo sobre o gelo e a neve iluminados pelo sol.

Aquela beleza era infinita, e com a imaginação foi mais além, até alcançar tudo aquilo a que ia renunciar para sempre.

Pensou naquele mundo grande e livre de onde tinha partido, e que era o seu próprio mundo, e teve uma visão das encostas longínquas, da distância atrás da distância, com Bogotá, um lugar de beleza e de multidão vibrantes, uma glória durante o dia e um mistério luminoso à noite, lugar de palácios, fontes, estátuas e casas brancas e belas. Pensou como, dentro de um dia ou pouco mais, poderia descer e atravessar desfiladeiros, acercando-se mais e mais das suas ruas e ruelas buliçosas. Pensou na viagem pelo rio, dia após dia, da grande Bogotá para o mundo ainda mais vasto lá fora, por entre cidades e aldeias, florestas e desertos, o rio correndo imparável, dia após dia, até que as suas margens se afastavam e os grandes vapores surgiam brilhantes, e tinha chegado ao mar - o mar sem limites, com suas mil ilhas, seus milhares de ilhas, e seus navios a vapor avistados através da nebulosa lonjura, em suas incessantes viagens à volta daquele mundo maior. Aí, livre da prisão das montanhas, era possível ver o céu… sim, o céu, não um disco como se via aqui, mas como um arco de azul imenso, em cujos abismos flutuavam e giravam as estrelas…

Os seus olhos examinaram a grande cortina de montanhas perscrutando-as ansiosamente.

Se uma pessoa subisse por aquele desfiladeiro, rumo àquele pico, seria possível passar por entre aqueles pinheiros-anões que corriam em volta numa espécie de coroa e se erguiam ainda mais alto passando acima do desfiladeiro. E depois? Aquele talude podia ser superado. Depois talvez pudesse ser achada uma via para a escalada que o levasse ao alto do precipício que se ocultava debaixo da neve, e se esse desfiladeiro falhasse, então outro mais a leste poderia servir. E depois? Depois estaria a caminhar sobre neve cor de âmbar, a meio caminho rumo à crista daqueles magníficos lugares desolados.

Virou-se para olhar para trás, para a aldeia, e observou-a de modo abrangente.

Pensou em Medina-saroté, que se tinha convertido num pequeno ponto remoto.

Virou-se de novo para a parede da montanha, por onde o dia claro tinha descido, ao seu encontro.

Então, resolutamente, começou a escalar. Quando o pôr-do-sol chegou, já não estava a subir, mas estava longe e muito alto. Tinha estado mais acima, mas ainda estava num lugar muito alto.

Tinha a roupa rasgada, os membros manchados de sangue e estava ferido em muitos lugares, mas sentia-se em paz e havia um sorriso no seu rosto.

De lugar em que repousava, parecia que o vale estava no fundo de um poço, quase a uma milha de distância. Os picos das montanhas que o rodeavam eram objectos de luz e fogo, e os pequenos detalhes das rochas mais próximas estavam impregnados de uma beleza subtil - um veio de mineral verde furando o cinza, a luminosidade de cristais aqui e ali, e muito perto do seu rosto, um pequeno líquen laranja de delicada beleza. Havia sombras profundas e misteriosas na garganta, de um azul intenso que se tornava púrpura, e o púrpura era de uma escuridão luminosa. Lá em cima desdobrava-se a ilimitada vastidão do céu, mas deixou de prestar atenção a estas coisas; permaneceu quieto e sorrindo como se simplesmente o satisfizesse o simples facto de ter escapado do vale dos cegos, no qual tinha pensado ser rei.

Apagou-se o resplendor do pôr-do-sol, a noite chegou, mas ele continuou ali, imóvel, contente e em paz, sob a luz fria das estrelas.

FIM

Autor

Herbert George Wells
Herbert George Wells

Herbert George Wells nasceu em Bromley, na Inglaterra. Em 1895, publicou A Máquina de Tempo, sobre um homem que viajava para o futuro. O livro foi um enorme sucesso; em seguida publicou A Ilha de Dr. Moreau (1895), O Homem Invisível (1897), e talvez o seu mais popular romance - A Guerra dos Mundos (1898). A partir daí, ganhou reputação como um pioneiro da ficção científica.

O conto ‘A Terra de Cegos’ foi publicado pela 1.ª vez na Revista Strand em 1904, saindo em livro, em 1911, incluido na colectânea “The Country of the Blind, and Other Stories”. Quase 30 anos depois, Wells resolveu reescrever a história, dando-lhe um diferente desfecho. A nova história foi publicada pela The Golden Cockerel Press com o mesmo título - The Country of the Blind - em 1939.

H.G.Wells, ‘The Country of the Blind’ - versão de 1904 Travelman Short Stories - Science Fiction No.1 - 1998 A Terra dos Cegos [texto integral] Tradução: Maria José Alegre, 2008

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Carlos Delfino

Escrito por:

Desenvolvedor e consultor para projetos com Microcontroladores e Mobile

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